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     Franco La Cecla está contra a arquitectura. Contra a forma como se pratica e como se pensa a arquitectura hoje. O contexto é de concorrência global, o que conduziu ao desenvolvimento de um panorama na área dominado pelas figuras dos arquitectos-estrela – os archistars –, actores e co-encenadores do grande espectáculo das cidades-centro comercial [Rem Koolhaas dá a linha: “O shopping é com toda a probabilidade a última forma de actividade pública que resta” (p. 14)].
     Contro l’architettura é um conjunto de reflexões sobre o papel dos arquitectos e da arquitectura contemporânea na construção do mundo onde vivemos, marcado cada vez mais pela diferença social. Esta diferença é construída, a nível urbano, através da dicotomia centro/periferia que, através de processos variados de poder (desde os interesses imobiliários à muito falada gentrificação) vão cristalizando os centros das cidades, tornando-os inacessíveis à generalidade da população, que se vê remetida para uma situação de “marginalidade física e simbólica” (p. 56) – a periferia – “resultado das melhores intenções de urbanistas, arquitectos e administradores nos últimos sessenta anos” (p. 57). A crise das periferias (flagrante nas revoltas dos banlieues parisienses) decorre do profundo desencontro entre as aspirações e capacidades das populações locais e a “insensibilidade à vida quotidiana expressa por arquitectos, engenheiros e planeadores em geral” (p. 60).
     O autor, arquitecto não-praticante (“Porque não me tornei arquitecto” é o primeiro capítulo do livro) e antropólogo, que fez do construído e do habitado a sua área de trabalho, alerta para a esterilidade dos discursos produzidos por estes arquitectos que falam incessantemente de mo- dernidade e de urbanidade sem terem em conta que falam de um tipo de realidade específico – a sua realidade e das elites que se apoderam das cidades –, sem terem projectos nem vontade para encontrar um caminho para sair da situação de falência das cidades na segunda metade do século XX (com os problemas dos grandes bairros operários, das migrações, dos desalojados, dos repatriados, do fim dos recursos e da distribuição das oportunidades, entre muitos outros). O discurso sobre a realidade proposto pelos archistars faz parte do pacote que vendem de si próprios: nada melhor que revelar aos outros uma verdade que nos serve.
     Submersos na lógica do mercado, os ateliers multinacionais tornaram-se marcas – brands – intimamente ligadas ao poder financeiro e os seus arquitectos/CEO, apoiados nos atraentes mas vazios discursos sobre a urbanidade que desejam impor, encontram soluções fáceis para si próprios e para os seus clientes. Passeando em Manhattan, por entre as obras que recentemente polvilham a cidade (Frank Gehry ou Jean Nouvel perto de Meatmarket, Koolhaas e a loja da Prada ou o New Museum pela dupla SANAA), La Cecla reflecte como esta forma de fazer cidade, espalhando constelações de mo- numentos arquitectónicos destinados a serem usufruídas por pequenas elites, nada trazem de benéfico para o conjunto dos habitantes, para aqueles que constroem e habitam espaços de verdadeira cidade, palpitantes e imprevisíveis, lugares ligados ao inconsciente e ao sonho. Mas estes espaços, que se desenvolvem para além e na sombra das planificações ditadas pelas institui- ções com poder, não interessam à arquitectura contemporânea. Por trás de uma retórica que mistura estética e branding, os archistars personificam o (neo)conservadorismo do Ocidente actual, reféns e aliados das estruturas de poder, construtores de injustiça social. É sintomática a forma como os grandes projectos públicos continuam a ser sistematicamente entregues a equipas lideradas por arquitectos, preferencialmente de um atelier multinacional e com um nome sonante, negligenciando o facto de as competências e capacidades dos arquitectos e da arquitectura, no que diz respeito à produção de conhecimento sobre o homem e sobre as cidades, ter conduzido no passado a situações hoje lamentáveis. Analisando os exemplos de Tirana (onde foi o único não-arquitecto do júri para o plano regulador da cidade e pressionou por uma solução menos “arquitectónica”) e de Barcelona (onde coordenou uma equipa multidisciplinar de pesquisa para a revitalização de um bairro, a propósito da chegada do comboio de alta velocidade), La Cecla sugere que o mediatismo que envolve os arquitectos famosos, com os seus argumentos assertivos sobre modernidade e sobre as cidades, assenta perfeitamente a uma classe política desejosa de mostrar obra feita e de ostentar nessa obra a assinatura prestigiante de um archistar, ainda que estes ignorem sistematicamente as realidades e necessidades locais (os exemplos, de Ghery ao incontornável Koolhaas, são inúmeros ao longo do texto).
     Todo o livro de Franco La Cecla refere o desencontro entre a arquitectura e os problemas que esta talvez devesse afrontar. Fala-nos da responsabilidade dos arquitectos, fala-nos da necessidade de se abandonar este sistema--espetáculo e de se aceitar a transdisciplinaridade como fundamental para fazer face ao fim necessário do actual modelo de cidade. |

 


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